quinta-feira, 30 de maio de 2013

Olhos de um céu nublado - Allana B.



Há algo sobre esses dias, dias em que o céu fica completamente coberto e escuro. Esses dias frios de outono.
Uma vez ouvi de um amigo o seu desgosto sobre dias nublados.
- Nuvens, sem chuva. É como se faltasse algo. Um dia incompleto.
 Confesso que pensei ter compreendido no momento; mas hoje, olhando o céu nublado tão perto ao ponto de poder tocá-lo, sinto que as palavras dele não possuíam o menor sentido.
Como poderia haver simples e qualquer falta em seus olhos? Como poderia haver pequenas inconstâncias em algo tão constantemente nublado? Não há nada de incompleto em um céu nublado. Não há nada de incompleto nos seus olhos.
Não é uma analogia ilógica. Explicarei ao longo desse texto, mas a maior explicação se encontra nas entrelinhas.
Seus olhos são, em seu aspecto superficialmente mais profundo, castanhos. Lindos olhos castanhos, particularmente. Mas é preciso olhá-los fixamente, com certa proximidade, pra ver o que se encontra por trás das nuvens. Ao fitá-los de longe, ou como qualquer outra pessoa normal, ou como qualquer outra pessoa, mesmo que anormal, tudo o que se pode ver é o tom acinzentado dessas nuvens. Olhos de um céu nublado.
Sempre achei engraçado, quando o tempo fecha, o modo como as pessoas olham para cima e dizem: Nossa! O céu “tá” preto.
O céu não é preto. Ele nunca fica preto. Quando coberto, o céu é cinza. Apenas cinza. Assim como seus olhos.
Pequenos olhos acinzentados, cobrindo o infinito castanho que, aliás, deveria vir com legenda. “Cuidado”.  Olhos que puxam, sugam, afogam.
Talvez seja essa a explicação para seus olhos serem nublados. A prevenção. O aviso de “perigo”. 
Há quem teime e ignore, há quem insista em se perder neles. Eu insisto; sou puxada, sugada, me afogo. Asfixio. Tento incessantemente evitar toda essa tortura, mas seus olhos... seus olhos não me deixam, nem quando fecho os meus. E é desse modo que me sinto claustrofobicamente amarrada, enlaçada, sem poder discernir o que estou fazendo ali e por que estou. Mas estou. Cada vez mais.
Às vezes me pergunto se essas nuvens nunca sairão de lá; me pergunto se um dia poderei invadi-los sem sentir o ar perfurando os meus pulmões a cada vez que o inalo. Já tive certeza que não. Já me convenci que não.
Mas aí vejo seus cílios. Lindos cílios escuros, como seus olhos.
E nas pontas, bem clarinhos. Claramente amarelos. Loiros. Como se raios de sol estivessem ultrapassando as nuvens, como se elas finalmente estivessem se afastando, deixando o brilho dourado refletir nas pontas dos seus cílios. Como se algo, bem lá no fundo, dissesse:
- Você está segura. Seja bem-vinda.

quarta-feira, 27 de março de 2013



     Olhos ao seu redor, e nada além do silêncio ensurdecedor. Olhos ao seu redor.
     Manchas vermelhas, luzes embaralhadas, a inércia perambulando pela sala de estar. Loucura e sanidade apostam corrida, movendo-se agressivas em uma disputa aparentemente irracional.
    Sussurros vorazes atravessam as frestas das janelas, das portas, dos dedos; a avidez transpondo barreiras impenetráveis.
     Suas mãos estão livres,  seus cabelos estão livres, sua dor tão livre ao ponto de poder experimentar inúmeras encharcadas vezes o oxigênio do lado de fora. 
      O que falta é liberdade. Mas essa custa caro - permanecerá detida por um longo tempo.

sábado, 10 de novembro de 2012

Menino modelo, garoto manequim. - Allana B.


Sentado no canto da festa, disfarça-se o menino modelo. Vestindo sorrisos, marcas, tóxicos.
Pobre modelo, manequim... dos olhos dourados refletindo ilusões, dos ossos saltando no pescoço, tais como os saltos que o afastam das lembranças de uma família feliz.
Seus passos quase dançam, bailam. Entretanto, movimentos não mudam o cambalear aspirado, ou o sono proveniente de tantas pílulas.
Menino da pele pálida, dos sons mixados, das imagens turvas, da diversão plástica.
Garoto das bolhas de sabão, e bolhas de vidro, e de cristal. Bolhas e mais bolhas. Bolhas que estouram, bolhas que se partem. Bolhas coloridas, perfeitamente desenhadas.
Sentado no canto da festa. Pudera outro ver, menino, além de mim, o que se passa quando as luzes da sua passarela se apagam.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

A pior parte de mim - Allana B.


Você.
A pior parte de mim tem quatro letras, duas sílabas. É oxítona.
Ela me aprisiona, encarcera entre os dedos e me tira o ar. Ela me sufoca, martiriza. Atormenta os meus sonhos insistindo no desejo sádico de brincar de jogo-da-memória.
Ela tem seus olhos, seus dentes, seu sangue. Comodista.
Controladora, rejeita todas as outras partes. Proíbe. Nenhuma é boa o bastante, nenhuma é má o bastante. Não há outras partes. Nunca para esta parte,
E por essas e outras eu a acolho em meus braços, encho de beijos e cubro antes de dormir. Eu a escolho entre tantas partes para, muitas vezes, ser a minha única.
Por ela eu escolho matar a morrer, agir a apenas observar. Por ela eu escolho revidar, responder, reviver, e reviver tanto até meu corpo implorar por uma pausa.
Quem dera voltar no tempo, onde não existia a pior parte de mim. Onde era apenas eu, bem antes de aceitar o convite preso em cima dessa parte, tolhido em uma fotografia.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

O apanhador de sonhos - Allana B.

De tanto tomar café, sentia dores no estômago. E então tomava remédios.
De tanto tomar remédios, tinha insônia, e então, tomava chás.
De tanto tomar chás, dormia. E de tanto dormir, sonhava.
E de tanto que sonhava, tinha pesadelos.
Vivia vidas que não eram suas, era perseguidas por monstros - muitas vezes reais.
Certo dia, sonhou que estava em uma praia, nua, cercada por câmeras. Acordou e quis chorar. Chorou.
Outra vez, sonhou que chovia e se afogava em lama. Acordou e quis respirar. Respirou.
Ainda, sonhou que vibrava, em frequências indecifráveis, de impossíveis equalizações. Acordou e quis gritar. Gritou.
E gritou tão alto que a vizinha ouviu, a irmã ouviu, a tia ouviu, a amiga do trabalho ouviu. Preocupada, comprou um apanhador de sonhos.
"- É pra colocar em cima da cama, e não pode deixar arrebentar. Ele te tira os pesadelos, mas, se rasgar, todos eles escapam." - foi o que disse uma das tantas que ouviram.
E de tanto ter pesadelos, comprou.
Na mesma noite, dormiu. E dormiu tão bem, sem sonhos, que não quis acordar. E do tanto que não sonhou, não acordou.